Mínimo possível comum | Ou as fotos que não tive coragem de fazer
Sento-me ao lado de um homem negro de grande porte num dos bancos da praça D. Pedro IV. Dou-lhe um boa-tarde. Ele responde, taciturno. Seu rosto é grave, tem uma cicatriz fina e vertical, de tamanho considerável. Alguns fios de cabelos brancos contrastam com sua pele. Ele usa um óculos de armação azul que praticamente grita para os passantes. Tenho vontade de arriscar uma conversa e ver se consigo fazer um retrato dele. Mas eu travo. Qualquer iniciativa soaria falsa de minha parte. Faço então algumas imagens aleatórias da calçada, mas isso não desperta sua atenção. Noto que na sua mão esquerda há vários pares de óculos que ele vende na rua; na sua grande mão direita percebo um anel de prata no dedo mínimo. Penso que somente aquela mão (e a cicatriz) renderiam um ensaio, mas ainda assim, permaneço apalermado. Um pateta com uma câmera na mão, incapaz de quebrar o gelo com um anônimo em um país estrangeiro. A luz da tarde de inverno estava magnífica.
Após quase dois meses de perambulação, para sempre vai ficar a impressão de que fiz do modo errado. Sem esperar que as cenas se formassem milagrosamente diante dos olhos, como fazia um paciente fotógrafo japonês com sua alma-câmera pronta para o registro ágil após longo tempo de observação. Como talvez ele fizesse diante da mulher negra, sentada sozinha, no primeiro vagão do metrô em direção ao Cais do Sodré, os olhos alinhados e encobertos pelo suporte de ferro de um dos assentos. Ensaiei pegar a câmera, mas pensei qual seria sua reação diante de um estranho invasor, um ladrão de imagens alheias com sentimento de culpa. Pensar demais é prejudicial nesses casos. Prefiro a intuição irresponsável quando ela surge bandoleira.
Vai permanecer ainda a sensação de que muito mais poderia ter sido documentado; outras formas de fotografar poderiam ser exploradas; outros lugares insuspeitos poderiam ser descobertos, mas apenas o mínimo possível foi feito. Entretanto, também é preciso lembrar que tempos atrás até mesmo este mínimo era inatingível. E compreender que em algumas histórias de vida, estranhamente são as próprias restrições que apontam o caminho e tornam viável alguma realização.
Que existam outros futuros mínimos possíveis.
Lisboa, março de 2017.
Fotos em fase de atualização.